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A cidade que não deixa ir e vir

17:00 | 01/04/2017

 
Fortaleza não é para quem tem mobilidade reduzida. Desde o tempo em que seu Chico Sapateiro tentava ser independente em cima de uma cadeira de rodas, à manivela, pelas calçadas e calçamento ruim do Porangabuçu.

Lá pelos dias dos anos 70, 80... Quando enganchava as rodas nos caminhos e sua esposa, bem gorda e com uma sombrinha, pelejava para arrancá-lo.

Mudaram quase nada os obstáculos na Cidade se seu Chico ainda fosse vivo.

E é palavrório dizer dos planos se eles não transformam para melhor a vida, agora, de quem deixou de andar ou não enxerga as dificuldade no ir e vir.

Tenho um amigo, Guilherme Salles, que peleja com a Cidade porque de outro jeito teria de se enfurnar em casa e nunca mais sair.

Por causa de uma paralisia cerebral, perto de nascer, veio ao mundo com menos locomoção. Mas há 40 anos não se entrega e insiste no corpo que o trouxe para ir atravessando os caminhos nada generosos em qualquer bairro.

Não há facilidades. Nenhuma rua e poucos equipamentos o incluem como ser que existe. Na última semana, veio me pedir socorro.

Izabel, sua companheira de afetos, com uma locomoção infinitamente inferior à dele, quer entregar os pontos.

Disse que não iria mais sair com ele para os pequenos passeios, nos fins de semana, ao shopping Via Sul nem iria mais à missa na igreja de São José. Já tinha desistido de pegar ônibus...

Dependente de uma cadeira de rodas, pois só consegue se deslocar com muito custo se se segurar em apoios e se o terreno não tiver armadilhas, Izabel cansou de ficar pelo caminho desde que nasceu há 36 anos, também, com uma paralisia cerebral.

Da casa dos dois para o Via Sul e para a igreja são seis ou sete quarteirões e uma Cidade que não dá colher de chá.

Como sou medíocre e só penso na perspectiva do corpo sem amarras, me assusta a travessia do casal.

Calçadas altas, lixo, calçadas baixas, declives, desníveis, piso impraticável... Buracos, pedras soltas, árvores de raízes expostas, meio fio e nada de rampas...

Guilherme vai empurrando a cadeira de Izabel...

O jeito é ir para o asfalto. Mas não há acostamento, então os carros não dão passagem, há disputa com bicicletas, há crateras, bueiros abertos, bocas de lobo à espreita e mondrongos.

Na Washington Soares mais constrangimentos. Até chegar à faixa de pedestres há estacionamentos com correntes, carros atravessados, gelo baiano, ferros em riste...

E, na calçada do Via Sul, são insuficientes ou não existem as rampas pra subir e descer.

Guilherme e Izabel têm um casal de filhos, andantes sem limitações. Às vezes, Dudu vai com o pai. Mas já houve acidentes por causa de uma pequena pedra solta no caminho.

Alguém exclamará: Meu Deus, que perigo! Melhor não arriscar. Mas aí é o embaraço do equívoco. Da peninha de quem (ainda) anda sem restrições e se acostumou aos estorvos da Cidade.

A rua é pra incluir, mas não é assim pra Izabel, Guilherme, Dudu e Bia. Nem os ônibus. Com elevadores e a impaciência alheia. Nem perto do nosso umbigo.

Fortaleza agora ou até 2040 precisa ser mais inclusiva no que oferece de caminhos para qualquer parte e independentemente de como rebentamos ou somos transformados por um tiro, um acidente, um inesperado...

Para Izabel e milhares desistirem de se exilar nas casas deles.


DEMITRI TÚLIO é repórter especial e cronista do O POVO demitri@opovo.com.br

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