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Tia Lindaura fez 100 anos

17:00 | 25/03/2017
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Chamar o tempo de “passado”? Falar verbos que dizem que fomos? Que fizemos? Que choramos? Que andamos por ali onde não existe mais aquela estrada, aquele cavalo mouro, aquele gado barbatão na manga do outro lado da mata do Quixabinha?

Pois não acredito, tia Lindaura, que os 100 anos dos quais a senhora é feita, desde ontem inteirados, sejam somente a definição de “passado”. É não. Talvez não.

Uma vida tão longa! A casa grande do entra e sai de gente e bicho em Umburanas; o tio Miguel (que já se foi há 38 anos); 14 filhos nascidos de parteira na camarinha; suas histórias e as minhas memórias da senhora quando me desterrava pra passar férias no Mauriti (com pronúncia esgaçada na última sílaba)...

Tia Lindaura fez 100 anos. E fiquei me perguntando se também queria ser do mesmo naipe e atravessar dez décadas. Assusta-me o que tem de ser.

E é ligeiro o tempo. Nos quintais onde nasci e me criei, entre o sertão, a serra e o mar, alguns dos parentes aportaram em um século ou beiraram por ali.

Também tiveram os que não vingaram. Histórias de alguns anjinhos. Primos ou parentela lá dos 1900 e tantos que paridos, logo, foram retirados repentinos. Foi quando comecei a estranhar como nasciam os anjos.

Mas tia Lindaura nunca teve destinação pra anjo. Taí hoje! É tão presente em alguns de meus novelos que, por vezes, sinto o cheiro do cuscuz derretendo no queijo coalho feito e servido na cozinha da fazenda Unha de Gato. Universo paralelo que ainda deve existir. Não é possível que não!

Desde quando fui menino, a conheço, em férias e na cata do gorgulho. Que não era por desleixo quando saíam dos feijões, aos montes, espalhados na mesa de madeira.

É porque a chuvarada tinha sido boa e a arranca melhor ainda. Muito legume,
grãos, vasilhas fartas e os gorgulhos vindo também pra tentar atravessar a vidinha particular deles.

Vida particular também tinham os capotes, bichos independentes. Criados no entorno do alpendrado. Vinham dormir em cima da casa os machos e as fêmeas que não estavam chocas nos ninhos nas capoeiras. Uma zoada inesquecível.

Pouca gente, como tia Lindaura, faz um capote na lata perto do que ela fazia. Talvez, o Faustino ou o Valdir do Campo Lindo da Reriutaba...

Pois, tia Lindaura, não sei o que desejar para uma senhora de 100 anos. Uma criatura do bem com um século de mundo. Mais felicidade, sem ser da boca pra fora, vou pedir.

Desejo também que continues voltando ao Mauriti, a Umburanas, pras festas de Nossa Senhora de Santana. Pena que não podes mais vir fazer as novenas...

E espero que por anos (o tanto que for bom) me responda, quando desejo saber como tem passado, que a tia vai bem mas um corrimento de águas nos olhos embaça a vista que era pra ser de menina.

Ou quando vou visitá-la, em Fortaleza, me pergunte onde deixei o cavalo que me trouxe...

Felizes 100 anos, tia Lindaura!
 

DEMITRI TÚLIO é repórter especial e cronista do O POVO demitri@opovo.com.br

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