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Uma crush na quaresma

17:00 | 25/02/2017
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A rua onde achava que havia nascido, e na verdade só cresci por lá, era também lugar de homens estranhos. Quando chegava o Carnaval, boa parte deles saía sozinho na Sexta-Feira Gorda e só voltava na Quarta-Feira de Cinzas.

Retornavam cara lambida, desconfiados, bafo de aguardente no mundo e um silêncio meio covarde. Sim, a maioria das mulheres aceitava o regresso. Naquela época, pelos anos 70, 80, se separar do marido ainda era um pecado.

Havia algumas não tão éguas. Quebravam o pau com os abestados, apanhavam, passavam dias sem intimidades e meio de mal. Até ameaçavam ir embora. Mas, depois, com a Quaresma, os dias indo, e tudo voltava ao normal da vidinha falseada.

Inquietava-me dona Harmonia. Assim, mesmo, a graça dela. O esposo, feito quase todos os casados da rua, ficava num pé e noutro, coçando-se para desembestar no samba. Brigavam e discutiam (renovadamente) sobre o empecilho de ela ir com ele. Mas o moço sempre dava um jeito de escapulir.

Taxista, o rapaz usava a praça como desculpa e não aparecia nem para saber se os dois filhos estavam tinham o que comer. E das raras vezes que prometeu passar o Carnaval em casa, deu um jeito de fugir.

Ia comprar um galeto e não tornava mais. Dizia que o cigarro tinha acabado e que precisava comprar uma carteira na mercearia do seu Barateiro e, de lá, pegava o beco... E assim sumia. Só Quarta-Feira das Cinzas, indo para a igreja e até cinzas na testa.

Dona Harmonia, nos primeiros anos de casada, o campeava em alguns clubes. Tiradentes, Santa Cruz, Romeu Martins, Apache, Ferroviários... Difícil encontrá-lo. Depois, deixou de lado e foi viver também no Carnaval.

Como fofoca é coisa que chega sem esforço, acabou descobrindo que o machão vivia com outras duas mulheres.
E, pelos cálculos, uma bem antes do casamento.
 

No começo, quis colocar vidro pisado de lâmpada na comida do patife. Pensou também em derramar água fervendo no ouvido quando pegasse no sono com ressaca. Mas não. Fez melhor e aí, por acaso, acabei sendo um dos brochotes beneficiado com a infidelidade do esposo.

Quando Carnaval chegava, ela deixava os dois filhos na casa das amásias, um em cada uma. Era muito constrangedor para os meninos, mas essas relações terminavam virando tão normais quanto inacreditáveis.

E todo Carnaval, desde quando fiz 17 anos e até uns 21, era convidado para um baile na casa de dona Harmonia. Ficava até depois do samba e tinha o gozo de vê-la retirar a fantasia. Bonita, grandona, meio Ivete Sangalo, uma crush...

Terminado o Carnaval, ela mal falava comigo na rua. Tinha a impressão que nem me conhecia e nunca havia me usado. E, talvez, fosse mesmo uma fantasia minha. E a vidazinha volvia à normalidade...

Ele no táxi, Corcel 1, amarelo queimado. Um pouco menos cafajeste, uma capanga na mão (havia um 38 ali) e a missa das 8 da manhã dos domingos. Ela e as crianças indo e vindo da escola na semana... ou dona Harmonia a comprar fígado gordo do homem a cavalo.

E eu a jejuar na Quaresma e não resistir
a mulher casada no Carnaval seguinte...
 

DEMITRI TÚLIO é repórter especial e cronista do O POVO
demitri@opovo.com.br

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