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Nadando com uma baleia na Praia de Iracema

17:00 | 18/02/2017

Morrer e deixar de ver o mar. Deixar de ir pelas ruas que se gosta. Não ter mais como voltar ao bairro que se quer bem....


E perder de vista o sertão? Não cheirar mais as pessoas do afeto? Não ouvir a bandinha peba do Pré-Carnaval? Não se banhar de chuva? Deixar de sonhar nadando com uma baleia na praia de Iracema…


Pois bem, deixei de ter medo de velórios quando Ricardo Guilherme me fez olhar diferente para quase tudo que Nelson Rodrigues deixou escrito.


Parei de virar o rosto para as funerárias ou quando passava em frente ao cemitério da Parangaba e, do ônibus, não queria avistar a porrada de túmulos mal caiados.


Também o Henrique Sérgio me fez perceber diferente a vida nos cemitérios. O São João Batista em especial. Todo cheio da Cidade, tumultuado de memórias e uma extensão da casa de cada um que vai lustrar o retrato de quem partiu.


Eu e Émerson Maranhão assistimos Fernanda Montenegro conversando com o Eric Nepomuceno. De coisas que me reencantaram numa semana mais ou menos que se foi. Porque é preciso encontrar outros dizeres para ir indo.


Disse assim, que não tinha medo de ser uma morta. Tinha pena. Ser falecida e deixar de provar um doce de banana, uma farofa de ovos, uma transa suspirante.


Sim, porque o que temos na vida e depois, talvez, só seja isso aqui. E o que somos, quase certeza, é o que acumulamos de memórias. Perdê-las também é fenecer.


Pode ser. Nunca vi pululantes nem um amnésico nem um defunto. Ou alguém, preste a se finalizar, distribuir beijos e abraços como se fosse ser amado por Brigitte Anne-Marie Bardot em Beberibe.

 

É chato morrer. Não é por causa da chegada do fim, mas pela falta que vamos nos fazer da Cidade, dos enlaces, das possibilidades…


Fui ao velório do Sérvulo Esmeraldo, no oratório simpático do Palácio da Abolição de jardins cheios de salsa-de-praia que quase deixaram de existir nas dunas da Praia do Futuro. Fazem falta também na Praia de Iracema e na Barra do Ceará.


Olhando para o Sérvulo, Dodora ao lado e cheia de saudades das mãos dele, fiquei fazendo as contas se seria um morto (pelo menos) satisfeito com a vida em 89 anos que teve.


Saiu do Crato, ganhou o mundo, fez arte por onde passou. Esteve em Paris, viveu em Fortaleza, na Suíça... Deve ter se deitado com quem se sentiu à vontade. Casou, teve filhas, descasou, casou de novo… Deve ter sido mais feliz do que emburrado.


Mas há coisas que sentirá ausência. De não cruzar mais com as obras dele e as do Carlus Campos; de não ter mais endereços; de não ouvir mais a cantiga dos grilos; de não sentir mais o cheiro de amanhecer no Cariri.


Morreu bem aos 89 anos. Sem nenhuma moléstia que o derretesse nem um assalto a mão armada (e morte) nas esquinas de Fortaleza.


Não tinha intimidade com Sérvulo, mas o que li, ouvi e sinto nas esculturas, suponho que tenha sido uma criatura abundante. Satisfeita na maior parte dos dias.


Mas lhe faltará o Mara Hope, o sítio do Karlo Kardozo, a Prainha de Ana Miranda e a vontade (e o medo) que ainda tenho de sair nadando com uma baleia e Fátima na Praia de Iracema…


DEMITRI TÚLIO é repórter especial e cronista do O POVO demitri@opovo.com.br

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